RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO DE FAMÍLIA. DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO

Um tema polêmico no meio jurídico e que já chegou aos Tribunais é a ocorrência ou não dos institutos da responsabilidade no direito de família. Mais especificamente, trataremos acerca da possibilidade de reparação por dano moral nos casos de abandono afetivo.

Pois bem, tenho meus receios quanto à concepção monetarizada dos direitos da personalidade, mas não como regra aplicável, e sim como pensamento fundamental, como demonstrarei a seguir.

Sistematicamente, faz-se necessário expor primeiro os aspectos jurídicos da defesa da indenização nos casos de ausência afetiva. Numa viagem exegética pelo ordenamento pátrio encontraremos expresso no artigo 1.566, IV, do Código Civil o dever de sustento, guarda e educação dos filhos.

Temos que a correta interpretação legislativa da norma legal não é a liberalidade quanto aos deveres constitutivos da entidade familiar, porquanto se fala em “dever”. Da forma como concebemos a família hodiernamente, podemos tranquilamente falar da sua composição como a de um Instituto Social, de modo que, ao lado da religião, da educação, do trabalho, compõe os instrumentos necessários para contenção das relações sociais e afirmação de valores do convívio.

Tendo, portanto, a família como Instituto, o legislador preocupou-se com sua ampla normatização, comprovando sua fundamental importância na sociedade.

Nesse aspecto, o aludido artigo 1.566 do Código Civil comporta os deveres dos cônjuges (ambos) para com a prole. Da mesma forma, anteriormente, no artigo 1.565, já se estabelece que são esses deveres as responsabilidades inerentes à constituição da família.

Com isso, o encargo (literalmente falando, incumbência) da educação se faz presente. E aqui vale uma abordagem filigranada na medida em que a interpretação hermenêutica nos leva a palavra educação em sentido latu sensu. Assim, cabe à prestação jurisdicional a distinção de situações efêmeras com constatações permanentes do cumprimento do disposto da norma do artigo 1.566, IV do CC.

Quer-se dizer com isso, que, mesmo numa situação de convívio permanente podemos ter em mente algumas atitudes e comportamentos de poder familiar exercido de maneira incipiente, como por exemplo, a mãe detentora da guarda do filho que não desenvolve seu tempo em favor desse, fazendo com que o filho viva num mundo apartado e distinto da sua capacidade, deixando de ter experiências imprescindíveis para sua formação futura. Mas, de outro lado, tem-se alegado por essa mesma mãe que as obrigações escolares da criança estão em dia e que, hoje, ela não desenvolve nenhum tipo de temperamento impróprio.

Daí a afirmação de ser necessário o entendimento do texto legal no sentido de educação latu sensu, e não a concepção calcada no senso comum.

Nesse sentido, Bertoldo Mateus de Oliveira Filho, em sua obra Emocionando a Razão, Aspectos Socioafetivos do Direito de Família, pg. 7, quando diz acerca do correspondente do artigo 1.566 do CC, que “não se pode dizer exaurida a obrigação pelo simples repasse de recursos hábeis a sobrevivência orgânica, porquanto, embora indispensáveis os bens materiais, está claro eu não prescinde daqueles outros cuidados destinados à formação social, cultural e moral dos filhos comuns”.

Assim, em poucas e sábias palavras, evidenciamos o que aqui se chamou de educação latu sensu.

E apenas para complementar os argumentos, como é sabido, o divorcio não extingue a obrigação para com os filhos, e nem mesmo outro casamento o faz (artigo 1.579 e parágrafo único do CC).

Com isso, podemos afirmar que tais obrigações e encargos para a prole são intenções motivadas do legislador, tendo como fundamento a Instituição Familiar. Tanto que o próprio código prevê sanção legal de descumprimento dos deveres de genitores (artigo 1.637 do CC).

Só temos a concluir que o descumprimento dos deveres frente aos filhos insurge em afronta ao dispositivo legal que os determina e, principalmente, à hercúlea pretensão legislativa ordinária e constitucional, que abarcam os princípios fundamentais da dignidade humana e proteção da família.

Nesse sentido, não obstante a existência do artigo 1.637 do CC supracitado, que comprova a existência de descumprimento legal com a falta dos encargos familiares, resta ser analisadas as conseqüências desse cumprimento.

De modo peculiar, seremos incapazes de prever as reais consequências do abandono afetivo. Tal situação não se representa com a ausência ou a presença dos pais, mas sim na participação do cotidiano da criança em seu mundo particular. Devem transpor a barreira da razão e mergulhar no mundo da imaginação do filho, vivendo conjuntamente seus sonhos e expectativas, sendo, mais do que nunca, um referencial de vida.

Por isso, a educação deve ser vista em todas as formas de interação com esse mundo especial desenvolvido pela inocência da criança. Temos que entender que o simples fato de sermos vistos em nossas atividades diárias representa um espectro a ser desvendado e, posteriormente, a ser seguido.

Ao fazermos ou dizermos determinada coisa, temos por parte dos filhos a atribuição de verdade e de correto. Não há de se negar nossa natureza determinista, onde somos fatalmente vítimas do meio que vivemos (salvo caráter de personalidade e genéticos). Por isso, não raro vemos filhos seguindo profissões do pai, ou irmãos mais velhos, sobrinhos as dos tios. Isso se deve ao fator preponderante da genealogia.

Nossas primeiras experiências são tidas dentro das nossas próprias casas, sejam elas ruins ou boas, modelos a serem seguidos ou atitudes a serem desprezadas nascem num mesmo seio familiar.

E se tal influencia não fosse a mais absoluta verdade, por que então nosso ordenamento preocupou-se tanto em disciplinar tal matéria? Porque sem os deveres do Instituto Familiar, esta perece. Perece nas oportunidades que a prole terá, perece na ausência de carinho, atenção, afeto. Resulta numa obra falha, sem base de sustentação para experiências essenciais e exemplos imprescindíveis de conduta e de vida, de certo ou errado. Não cabe ao mundo adotar essa tarefa.

Constante disso, o dano é caracterizado na falta de educação (lembrando sempre, lato sensu, abordando entre outros aspectos o afeto.) Irritabilidade, agressividade, carência afetiva, timidez, vergonha, aborrecimentos múltiplos, falta de atividades essencialmente atribuídas ao genitor ausente, falta de referencial, exemplo, são todas possíveis conseqüências do abandono afetivo.

Arrisco-me a dizer que são constantes nessa situação, podendo sim evoluir para estágios mais preocupantes como a depressão, violência, desvio de conduta, entre outros.

Caracterizado o dano e a lesão a direito, surge a figura do ato ilícito, conforme artigo 186 do CC. Assim, negando assumir os deveres e obrigações com os filhos, o agente infringe notadamente o artigo 1.566 do CC, podendo ser punido conforme artigo 1.637 do mesmo diploma, resultando nos danos acima citados de modo a incorrer em ato ilícito.

Seguindo a exegese legislativa, recorremos ao artigo 927 do CC que obriga a reparação por ato ilícito. O fundamento é simples: se você fere direito de outrem, não propiciando afeto ao seu filho, p.ex., necessariamente causará danos a ele, mesmo que de natureza moral-psicológica. E com base no princípio do Acesso a Justiça, por força do qual a Constituição não admite sequer ameaça de lesão a direito, que dirá reste lesão sem a devida reparação.

Assim, munido do Principio da Legalidade, resta evidenciada a responsabilidade civil. Não por força de lei, como diz Carlos Alberto Bittar, responsabilidade de pleno direito, nem mesmo por atividade de risco (muito embora ser pai não deixa de ter seus riscos). Assim, no tema em discussão, trata-se de perquirição de culpa provada para caracterização da Responsabilidade Civil Subjetiva.

E, finalizando nossa viagem exegética pelo Código Civil, damos nossa última parada no artigo 144, que estabelece os suportes para valoração da indenização.

Acredito numa devida ponderação de juízos carregados de juridicidade, bem como subjetividade. Sou sectário daqueles que primam pelos Princípios Gerais como arcabouço lógico de um sistema de comandos. Posto isso, analisemos a indenização:

Artigo 1º, III, da CF = Dignidade da Pessoa Humana.

Temos nesse dispositivo um Principio Jurídico Fundamental, insaciável, atribuído a todos os cidadãos. É transnacional, transcomercial, transracial, primado maior de justiça. Assim sendo, dispensa maiores comentários.

A ausência afetiva paterna, p.ex., causaria a falta de referencial masculino ao filho. Ele teria de aprender fora de sua própria casa os conceitos de pai de família, de sua sexualidade; teria de conviver com a angústia de rejeição, do enfrentamento da inferiorização frente os demais semelhantes, sentindo a falta da visita do pai no dia de seu aniversario, natal; tendo que presenciar atividades escolares comemorativas dos dias dos pais sem ao menos ter a quem homenagear, sabendo que em algum lugar seu pai está fazendo qualquer coisa, menos pensando na sua existência, se está tudo bem, se o filho precisa de algo, se tem algum problema.

Para sentirmos isso, temos que nos transportar para tal situação. Portanto, devemos ter sempre como centro do estudo do caso a criança. Ela será o ponto de partida e também o ponto de chegada, sendo o objeto e o objetivo.

Pergunto: qual o objetivo da pensão alimentícia? Não é outra senão a sustentabilidade segura do filho, compondo os componentes orgânicos. O descumprimento dessa obrigação acarreta em sanção punitiva de prisão civil. O fundamento da prisão é a própria sustentabilidade do filho, que é a finalidade máxima instituída. Busca-se o recebimento da prestação alimentícia e não o cerceamento de liberdade, posto que em nada se beneficia o filho com a prisão do genitor. Aquele somente quer suprir suas necessidades e este tem a obrigação de satisfazê-las.

Usando o mesmo fundamento do filho como objetivo final dos institutos normativos, buscamos embasamento para justificar a indenização por abandono afetivo.

Fartamente provado que o abandono afetivo (educação latu sensu) configura afronta legal, resultando em ato ilícito, o qual deve ser reparado. Resta ilustrar a finalidade da indenização nesse caso.

Retomando o filho como objetivo, temos que a obrigação de reparar o dano sofrido por esse não é ensejo para aludir novamente a figura punitiva. Esta, como dito anteriormente, não é benéfica para ninguém e nem mesmo é ideal de justiça social. O que se busca é a reparação e não a punição.

No caso da pensão, busca-se o restabelecimento da situação de sustentabilidade do filho. Nesse diapasão, a indenização pela ausência afetiva busca a reparação do dano causado, propiciando ao filho uma vida menos angustiante de modo que se dê oportunidade da superação dos traumas inerentes a falta de carinho e atenção, fazendo com que a figura afetiva do patriarca seja substituída por outras atividades, e até mesmo na busca de profilaxia para as conseqüências, garantindo o desenvolvimento cognitivo futuro do filho.

Exemplos cabíveis de métodos a serem utilizados com o advento da reparação pecuniária são viagens, passeios, ciclos de amizades, atividades culturais, pedagógicas e psicológicas. São as chamadas lacunas que foram deixadas e que se não forem preenchidas resultarão em vazios por toda a existência do filho.

Propositalmente, usou-se a palavra criança e filho, cabendo explicar a distinção de seu emprego. Essa discussão envolve o tempo hábil para proposição da ação da indenização. Acredito que, em sendo as circunstancias fatídicas acontecidas no decorrer do crescimento e desenvolvimento do filho, esse tempo se dá em sua menoridade.

Contudo, como já mencionado alhures, a responsabilidade dos pais percorre toda a existência da prole devido ao fato de que a representação da educação dada será exposta somente no decorrer da vida.

Neste sentido, podemos ter caracterizado o dano pela ausência afetiva somente após a maioridade, mas tendo seu cerne causador na criação infanto-adolescente. Portanto, não haveria segurança jurídica se estabelecida uma idade limite para postulação da ação porque, concomitantemente, estaríamos atribuindo também um limite para responsabilidade subjetiva dos pais perante seus filhos.

Finalizando, retomo ao ponto de partida quando disse do meu receio quanto a monetarização dos direitos da personalidade. Defendo sim o cabimento de pedido de reparação por ausência afetiva, assim como em rompimento de noivado, assegurada a devida observância dos requisitos da responsabilidade civil subjetiva fundada em culpa (também latu sensu) provada.

Contudo, receio os postulados de senso comum que atribuem caráter estritamente punitivo à indenização, fazendo com que o instituto indenizatório seja prostituído por valoração de enriquecimento fácil e sem justa causa (até porque a CF veda; artigo 173, §4º).

Portanto, havendo dano, enseja reparação. Cabe ao interprete a laboriosa tarefa de aplicar devidamente o instituto indenizatório.

Tem-se nas relações afetivas o mecanismo ideal para garantia e perpetuação da família moderna, fazendo com que o princípio da dignidade da pessoa humana seja inteiramente respeitado.

No tocante ao abandono afetivo, tem-se claramente demonstrado que é afronta os princípios normativos que norteiam o direito de família, assim como contraria o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Configurando clara afronta legal, surge a figura do ato ilícito, causando dano a pessoa do abandonado. Assim, o direito não pode ser conivente com a ameaça de lesão ou lesão a direito, devendo o causador de o dano ser punido e obrigado a reparação desse dano.

Pedidos de indenização por dano moral começam a ser ajuizados, com direito reconhecido ao abandonado afetivamente, demonstrando a evolução do pensamento da sociedade e do mundo jurídico, afim de elevar o afeto a categoria de princípio.

No entanto, o Superior Tribunal de Justiça negou o direito a indenização por abandono afetivo. Contudo, essa foi a primeira vez que o tribunal manifestou-se acerca da questão.

Como é sabido, o direito caminha de mãos dadas com a evolução da sociedade de seus costumes. Assim, com a valorização do afeto, o reconhecimento da importância da família constituída, teremos em breve a esperada superação dos preconceitos e medos, para chegar-se ao ponto da justiça social.

*Marcelo Oliveira Barcelos Filho, advogado, especialista em Direito Processual Civil pela UFU.

**Resumo da Monografia de conclusão do Curso de Direito da UEMS, defendida em 30 de junho de 2006.